O avanço da autonomia privada no campo familiar: comentários ao acórdão do AgInt no REsp 1.960.527/RN

Autores

  • Diogo Pitta

Resumo

1. Controvérsia. A Lei 8.122, de 11 de dezembro de 1990 (conhecida como “Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União”) dispõe, em seu art. 217, II, que, entre os beneficiários de pensões por morte do servidor público federal, estão “o cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato, com percepção da pensão alimentícia estabelecida judicialmente”. Ocorre que, neste AgInt no REsp 1.960.527/RN, a ex-cônjuge do de cujus, servidor público federal aposentado, percebia pensão alimentícia sem caráter judicial, estabelecida por escritura pública lavrada à ocasião da realização do divórcio consensual do casal em 2008.

Ora, à primeira vista, a ex-cônjuge estaria excluída do âmbito de aplicação do referido dispositivo, dado que o beneficiário da pensão por morte, nos termos estritos da legislação, só pode ser aquele que percebe pensão alimentícia estabelecida judicialmente, o que excluiria a modalidade da pensão alimentícia registrada em cartório extrajudicial. Sob esse argumento, a companheira sobrevivente do servidor falecido alegou que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, ao atribuir metade da pensão por morte à ex-cônjuge, violou texto expresso de lei federal, nomeadamente, o art. 217, II, do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União.

A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no entanto, negou provimento ao recurso especial da companheira sobrevivente, que visava excluir a ex-cônjuge do de cujus do rateio da pensão por morte. De acordo com o voto do Min. Rel. Humberto Martins,

“[...] publicada em 1990, a Lei 8.112, obviamente, não poderia antever modificações que foram positivadas somente a partir de 2007, como a possibilidade de pensão alimentícia legal (art. 1.694 e ss. do CC/2002) ser estabelecida por escritura pública entre partes concordes, de modo que o Tribunal regional conferiu adequada interpretação ao caso concreto.”

A tese subjacente à decisão do STJ é a de que a interpretação dos dispositivos de Direito Adminis­trativo, in casu, do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, deve observar, quando houver pontos de contato com institutos de Direito de Família, o desenvolvimento das relações de família.

Para o relator,

“[...] as legislações contemporâneas têm estimulado não apenas a desjudicialização onde não houver conflito, como também a autonomia da vontade, a autonomia privada e a autodeterminação, adotando métodos cada vez mais adequados de resolução de necessidades sociais.”

A seguir, este argumento acerca das transformações no Direito de Família será aprofundado sob uma perspectiva histórico-comparativa (Seção 2). Por fim, será analisada a correção da decisão do Tribunal sob uma perspectiva dogmática (Seção 3).

Biografia do Autor

Diogo Pitta

Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito (Largo de São Francisco) da Universidade de São Paulo – USP. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE, com período de mobilidade acadêmica na Universidade de Tübingen Eberhard-Karls (Tübingen, Alemanha). Advogado. 

Referências

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Publicado

2024-01-02

Edição

Seção

Comentários de Jurisprudência